Em 1996, depois de anos a fazer exames a tudo e a mais alguma coisa, médicos meus amigos nada encontraram e um deles, no Hospital São Francisco Xavier, sentenciou:
-- Não há nenhuma doença com esses sintomas. Vai a uma consulta de Psiquiatria, pode ser que seja psicossomático ! -- Ok -- Agradeci-lhe, nem vencido nem convencido.
Procurei pelas clínicas perto de onde moro e encontrei uma. Liguei, marquei, fui...
Entrei para um gabinete pequeno claustrofóbico, apenas com uma janela. A Dra X cumprimentou-me com ar distante, mandou-me sentar numa desconfortável cadeira de madeira, enquanto ela se aboletava num cadeirão forrado a pele, almofadado, com encosto para os braços e a cabeça. Ao lado,no espaço exíguo apenas uma maca com um lençol branco. Um ambiente tétrico em tudo diferente, para pior, dos consultórios de Psiquiatria que se vêem nos filmes.
Antes de preencher a ficha como os meus dados pessoais carregou no botão de um cronómetro, acto que me irritou profundamente. A primeira impressão era péssima.
Dra: -- Então o que o trás por cá?
Eu: -- Sinto-me mal de uma maneira que nem consigo explicar muito bem...
Dra: -- Mau estar geral?
Eu: -- Isso mesmo.
Dra: -- Já foi ao médico?
Eu: -- Fui a vários, fiz imensos exames e mandaram-me para Psiquiatria.
Dra: -- Mas porque o mandaram para Psiquiatria?
Eu: -- Disseram-me que os meus sintomas não correspondiam a doença nenhuma...
Dra: -- Mas isso não quer dizer que seja psicológico...
Eu: -- Não sei, de Medicina não percebo nada...
Dra: -- É nervoso?
Eu: -- Sou, especialmente quando me irritam...
Dra: -- Isso é normal !
Esta resposta fez-me pensar pela primeira vez se não estaria ali a perder tempo.
Eu: -- Talvez seja mas sinto-me mal muitas vezes
Dra: -- Vejo aqui que a sua profissão é stressante...
Eu: -- Pode ser, mas gosto dela, e os meus colegas não andam assim...
Dra: -- Mas que género de mau estar é esse?
Eu: -- Abdominal, taquicardias, tonturas, fadiga, falta de força, às vezes vómitos, outras vezes choques eléctricos no corpo...
Dra: -- Sofre do coração?
Eu: -- Não sei, mas os médicos disseram que não depois de verem os ECG que fiz...
Dra: -- Anda a tomar alguma coisa?
Eu: -- Lorenin!
Dra: -- Sente-se bem com ele?
Eu: -- Não, por isso vim aqui !
Dra: -- Estou a ver na sua ficha que é divorciado. Vive sózinho?
Eu: -- Às vezes...
Dra: -- Às vezes como?
Eu: -- Tenho uma amiga ou outra que fica comigo quando tenho tempo...
Dra: -- Foi desde a separação que se sentiu assim?
Eu: -- Não, desde os 25 anos, antes do meu primeiro casamento...
Dra: -- Não estou a ver motivos para você vir aqui...
Eu: -- Vim porque me sinto mal, como lhe disse, e a conselho dos seus colegas...
Dra: -- Aconteceu-lhe alguma coisa grave na vida, na infância?
Eu: -- Não passei fome...Só levei algumas tareias valentes...
Dra: -- E além disso?
Eu: -- Se está a lavar para o campo das violações ou algo do género não aconteceu nada...
Dra: -- Lembra-se de algum motivo que o levasse a ficar mal?
Eu: -- Aconteceu-me tanta coisa, as tareias, os castigos, a tropa lixada, a guerra, desastres de automóvel, amigos que morreram, muita coisa...
Dra: -- Continuo sem ver um motivo para me consultar...
Aí confesso que me exaltei um bocadinho...
Eu: -- Desculpe, eu não gosto de médicos, odeio médicos, odeio hospitais, odeio doenças, odeio consultas odeio tudo o que se relaciona com isto...Acha que vim aqui para passar o tempo?
Dra: -- Acalme-se, há colegas meus que mandam para aqui toda a espécie de gente...
Eu: -- Dra, vamos lá ver se nos entendemos, eu estou cada vez mais limitado a fazer coisas normais como conduzir, andar em multidões, custa-me a andar, canso-me imenso, tenho suores quentes ou frios, mesmo assim não falto um dia ao meu trabalho e como já pôde ver a minha vida é andar de um lado para o outro...
Dra: -- ..................
Eu: -- Posso fumar?
Dra: -- Não, isto é uma consulta.
Eu: -- Pensei que em Psiquiatria não tinha problema fumar.
Dra: -- Comigo, tem...
Eu: -- Por ser consigo ou por ser assim em toda a Psiquiatria?
Dra: -- Isso não interessa...
Eu: -- Como já vi fumar nos filmes de malucos...
Dra: -- Pois, mas aqui não se fuma nem há malucos !
Eu: -- Então não vale a pena vir aqui, não é?
Dra: -- Vamos fazer uma coisa: eu não estou a detectar nada de anormal em si, pode ser uma crise passageira...
Eu: -- Passageira? Há 15 anos que ando assim, alternando fases péssimas com outras menos más, "isto" seja o que for de passageiro não tem nada...
Dra: -- Vou-lhe receitar dois medicamentos e em quinze dias passa-lhe isso tudo...
Eu: -- E o Lorenin?
Dra: -- Vai tomar uma Fluoxetina e um Xanax 0,5 por dia, ao pequeno-almoço e vai ficar bem, sem nada disso que sente...
Rabiscou a receita particular, "mandou-me" pagar os dez contos à empregada e despediu-se com a aspereza com que me recebera.
Doze anos, 98 consultas e mil e quinhentos contos depois:
Eu: -- Dra, isto está cada vez pior, já tomo 3 xanax 0,5 por dia já tomei duas Fluoxetinas por dia, já mudei da Fluoxetina para a Paroxetina e agora nem á rua consigo sair, apanhei fobias de todo o género tremo de dia e noite, o coração ora parece que salta ora parece que pára, a única coisa de útil que ainda vou fazendo é conseguir trabalhar em casa com o computador e às vezes fazer umas pinturas...
Dra (após prolongadíssímo silêncio): -- Bem, sr. XXXXXX (Tremelix) temos de mudar a medicação, afinal o seu problema é Transtorno de Ansiedade Agudo, vai tomar XXXXX à noite. Depois telefone-me.
Nem me despedi dela, furioso pelo diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Agudo atrasado quase doze anos. Afinal para que serviram à volta de 100 horas de conversa?
Entretanto o XXXXX que ela me receitara mostrei-o ao meu médico de clínica-geral. Ele olhou para o medicamento sorriu, e perguntou-me:
--Doi-lhe alguma coisa?
--Não, dr., foi a minha Psiquiatra quem me receitou isso porque descobriu passados doze anos que tenho Transtorno de Ansiedade Aguga.
Ele fez um gesto de que algo não estava bem e inquiri-o:
-- Dr., seja sincero comigo, ponha-se no meu lugar se puder e diga-me, se fosse consigo tomava isso?
-- Não -- Respondeu imediatamente.
--Ok, dr., confio em si
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