quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Isto há cada besta...


Em 1996, depois de anos a fazer exames a tudo e a mais alguma coisa, médicos meus amigos nada encontraram e um deles, no Hospital São Francisco Xavier, sentenciou: 
-- Não há nenhuma doença com esses sintomas. Vai a uma consulta de Psiquiatria, pode ser que seja psicossomático ! 
-- Ok -- Agradeci-lhe, nem vencido nem convencido. 

Procurei pelas clínicas perto de onde moro e encontrei uma. Liguei, marquei, fui... 
Entrei para um gabinete pequeno claustrofóbico, apenas com uma janela. A Dra X cumprimentou-me com ar distante, mandou-me sentar numa desconfortável cadeira de madeira, enquanto ela se aboletava num cadeirão forrado a pele, almofadado, com encosto para os braços e a cabeça. Ao lado,no espaço exíguo apenas uma maca com um lençol branco. Um ambiente tétrico em tudo diferente, para pior, dos consultórios de Psiquiatria que se vêem nos filmes. 
Antes de preencher a ficha como os meus dados pessoais carregou no botão de um cronómetro, acto que me irritou profundamente. A primeira impressão era péssima. 

Dra: -- Então o que o trás por cá? 
Eu: -- Sinto-me mal de uma maneira que nem consigo explicar muito bem... 
Dra: -- Mau estar geral? 
Eu: -- Isso mesmo. 
Dra: -- Já foi ao médico? 
Eu: -- Fui a vários, fiz imensos exames e mandaram-me para Psiquiatria. 
Dra: -- Mas porque o mandaram para Psiquiatria? 
Eu: -- Disseram-me que os meus sintomas não correspondiam a doença nenhuma... 
Dra: -- Mas isso não quer dizer que seja psicológico... 
Eu: -- Não sei, de Medicina não percebo nada... 
Dra: -- É nervoso? 
Eu: -- Sou, especialmente quando me irritam... 
Dra: -- Isso é normal ! 

Esta resposta fez-me pensar pela primeira vez se não estaria ali a perder tempo. 

Eu: -- Talvez seja mas sinto-me mal muitas vezes 
Dra: -- Vejo aqui que a sua profissão é stressante... 
Eu: -- Pode ser, mas gosto dela, e os meus colegas não andam assim... 
Dra: -- Mas que género de mau estar é esse? 
Eu: -- Abdominal, taquicardias, tonturas, fadiga, falta de força, às vezes vómitos, outras vezes choques eléctricos no corpo... 
Dra: -- Sofre do coração? 
Eu: -- Não sei, mas os médicos disseram que não depois de verem os ECG que fiz... 
Dra: -- Anda a tomar alguma coisa? 
Eu: -- Lorenin! 
Dra: -- Sente-se bem com ele? 
Eu: -- Não, por isso vim aqui ! 
Dra: -- Estou a ver na sua ficha que é divorciado. Vive sózinho? 
Eu: -- Às vezes... 
Dra: -- Às vezes como? 
Eu: -- Tenho uma amiga ou outra que fica comigo quando tenho tempo... 
Dra: -- Foi desde a separação que se sentiu assim? 
Eu: -- Não, desde os 25 anos, antes do meu primeiro casamento... 
Dra: -- Não estou a ver motivos para você vir aqui... 
Eu: -- Vim porque me sinto mal, como lhe disse, e a conselho dos seus colegas... 
Dra: -- Aconteceu-lhe alguma coisa grave na vida, na infância? 
Eu: -- Não passei fome...Só levei algumas tareias valentes... 
Dra: -- E além disso? 
Eu: -- Se está a lavar para o campo das violações ou algo do género não aconteceu nada... 
Dra: -- Lembra-se de algum motivo que o levasse a ficar mal? 
Eu: -- Aconteceu-me tanta coisa, as tareias, os castigos, a tropa lixada, a guerra, desastres de automóvel, amigos que morreram, muita coisa... 
Dra: -- Continuo sem ver um motivo para me consultar... 

Aí confesso que me exaltei um bocadinho... 

Eu: -- Desculpe, eu não gosto de médicos, odeio médicos, odeio hospitais, odeio doenças, odeio consultas odeio tudo o que se relaciona com isto...Acha que vim aqui para passar o tempo? 
Dra: -- Acalme-se, há colegas meus que mandam para aqui toda a espécie de gente... 
Eu: -- Dra, vamos lá ver se nos entendemos, eu estou cada vez mais limitado a fazer coisas normais como conduzir, andar em multidões, custa-me a andar, canso-me imenso, tenho suores quentes ou frios, mesmo assim não falto um dia ao meu trabalho e como já pôde ver a minha vida é andar de um lado para o outro... 
Dra: -- .................. 
Eu: -- Posso fumar? 
Dra: -- Não, isto é uma consulta. 
Eu: -- Pensei que em Psiquiatria não tinha problema fumar. 
Dra: -- Comigo, tem... 
Eu: -- Por ser consigo ou por ser assim em toda a Psiquiatria? 
Dra: -- Isso não interessa... 
Eu: -- Como já vi fumar nos filmes de malucos... 
Dra: -- Pois, mas aqui não se fuma nem há malucos ! 
Eu: -- Então não vale a pena vir aqui, não é? 
Dra: -- Vamos fazer uma coisa: eu não estou a detectar nada de anormal em si, pode ser uma crise passageira... 
Eu: -- Passageira? Há 15 anos que ando assim, alternando fases péssimas com outras menos más, "isto" seja o que for de passageiro não tem nada... 
Dra: -- Vou-lhe receitar dois medicamentos e em quinze dias passa-lhe isso tudo... 
Eu: -- E o Lorenin? 
Dra: -- Vai tomar uma Fluoxetina e um Xanax 0,5 por dia, ao pequeno-almoço e vai ficar bem, sem nada disso que sente... 

Rabiscou a receita particular, "mandou-me" pagar os dez contos à empregada e despediu-se com a aspereza com que me recebera. 

Doze anos, 98 consultas e mil e quinhentos contos depois: 

Eu: -- Dra, isto está cada vez pior, já tomo 3 xanax 0,5 por dia já tomei duas Fluoxetinas por dia, já mudei da Fluoxetina para a Paroxetina e agora nem á rua consigo sair, apanhei fobias de todo o género tremo de dia e noite, o coração ora parece que salta ora parece que pára, a única coisa de útil que ainda vou fazendo é conseguir trabalhar em casa com o computador e às vezes fazer umas pinturas... 
Dra (após prolongadíssímo silêncio): -- Bem, sr. XXXXXX (Tremelix) temos de mudar a medicação, afinal o seu problema é Transtorno de Ansiedade Agudo, vai tomar XXXXX à noite. Depois telefone-me. 

Nem me despedi dela, furioso pelo diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Agudo atrasado quase doze anos. Afinal para que serviram à volta de 100 horas de conversa? 

Entretanto o XXXXX que ela me receitara mostrei-o ao meu médico de clínica-geral. Ele olhou para o medicamento sorriu, e perguntou-me: 
--Doi-lhe alguma coisa? 
--Não, dr., foi a minha Psiquiatra quem me receitou isso porque descobriu passados doze anos que tenho Transtorno de Ansiedade Aguga. 
Ele fez um gesto de que algo não estava bem e inquiri-o: 
-- Dr., seja sincero comigo, ponha-se no meu lugar se puder e diga-me, se fosse consigo tomava isso? 
-- Não -- Respondeu imediatamente. 
--Ok, dr., confio em si

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