terça-feira, 28 de novembro de 2006

Desde o chão

A pele porosa do silêncio
agora que a noite sangra nos pulsos
traz-me o teu rumor de chuva branca.

O verão anda por aí, o cheiro
violento da beladona cega a terra.
Cega também, a boca procura
trabalhos de amor. Encontra apenas
o nó de sombra das palavras.

Palavras... Onde um só grito
bastaria, há a gordura
das palavras. Palavras -
quando apetecem claridades súbitas,
o sumo estreme, a ponta extrema
do teu corpo, arco, flecha,
corola de água aberta
ao fogo a prumo do meu corpo.

Do chão ao cume das colinas,
eis as areias. Cala-te.
Deita-te. Debaixo dos meus flancos.
A terra toda em cima. Agora arde. Agora.

Eugénio de Andrade

Soneto de amor

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio

segunda-feira, 27 de novembro de 2006

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Mário Cesariny

Lembra-te

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny

domingo, 26 de novembro de 2006

O MAR

Canta e bate o mar, não está de acordo.

Não o amarrem. Não o encerrem.

Está ainda a nascer. Rebenta a água na pedra e

abrem-se pela primeira vez os seus infinitos olhos.

Mas já de novo se fecham, não para morrer,

mas para continuar a nascer.

Pablo Neruda

POEMA À MÂE

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me?
-Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade

sábado, 25 de novembro de 2006

Os carros velhos que deixamos

A São tinha voltado, sem ninguém saber, tinha-se instalado na cidade de onde tinha saído há muito.
Estava parecida com o que era, mas sempre fora igual a tanta gente que, dificilmente alguém se lembrava mesmo dela.
De cada vez que se olhava para ela, fazia lembrar alguém, sempre outra pessoa e isso era a São.
A cidade era antiga, do tempo dos cruzados. As muralhas de pedra arredondadas pelo vento mostravam o peso que a São não tinha na sua face.
Encontrei-a um dia e como só podia, foi a São que se lembrou de mim.
Como me recordei logo de tudo o que se tinha passado entre nós.
Como era forte o tempo que nós tínhamos em comum.
Cativante e inebriante, de face ingénua, de criança, e assexuada expressão.
Ali estava tudo, a memória do que podia ter sido se.
A conversa foi logo de intimidade e ondas de energia a percorrer todo o corpo.
A cumplicidade e a vergonha do afastamento invadiu-nos.
Sabíamos que algo não estava certo. Mas o quê?
Ela era o que sempre fora, só queria que gostassem dela.
Porque é que acontece isso às pessoas que ao ficarem perto de algumas outras, ficam como se não se conhecessem a si mesmas?
Nós éramos assim, ou melhor ela era assim perto de mim.
Desconfiava no entanto que tinha saído da cidade por minha causa. Não aguentava a nossa proximidade que mexia com ela, aumentando-lhe a agitação sem me fazer parecer agitado
Podia tudo menos isso.
O outro tinha de ficar mais agitado do que ela para ela poder confiar.
Voltou na esperança de ficar, e isso era algo que fazia a diferença no seu comportamento.
Agora não só fazia lembrar os outros na cara como na atitude, até ver.
Aquele encontro não podia ter acontecido, tudo se transformou.
A memória do que aquela cidade é ao pé de mim, voltou a faze-la diferente aos olhos dos outros e isso era insuportável.
Teve de fazer alguma coisa, mas o quê.
Talvez criar um medo, pânico nos outros.
À noite quando estava sentado á janela alguém arremessou um pau, que para alem de partir o vidro fez um grande estrondo com a sua entrada.
Sabia que era ela.
Eu não devia ter parecido calmo quando a encontrei, isso era para ela o pior. Não sabia interpretar os seus sentimentos sem convulsão, a raiva e sem o confronto do outro.
Eu tinha de decidir o que fazer a seguir.
A São tinha mudado de emprego, agora trabalhava no campo, era um trabalho que a fazia relacionar com pessoas que vinham e iam em pouco tempo e raramente voltavam, era mesmo bom para ela.
Assim, podia ser todas as personagens que conseguia, sem problemas de a confrontarem com a estranheza de estar sempre a mudar.
Mas, lá estava eu para tornar tudo difícil, impossível vim eu a perceber.
Aproximei-me calmamente e falei.
Era impossível falar, isso trazia tudo a lume e o medo de não saber o que era a sua natureza era o pior do mundo, pelo menos era o que ela parecia sentir.
Não aguentou, e como o que sabia fazer era fugir, desapareceu deixando o carro que a acompanhava desde o tempo em que nos conhecemos pela primeira vez.
Um carro que tinha sido caro e luxuoso quando novo, mas agora já sem trabalhar e com ferrugem e mossas era um peso a menos que transportava para onde quer que fosse.
O seu antigo amor tinha-a vindo buscar e era uma saída de cena pelo menos familiar já que o desejo de mudar para o que queria, no fundo, era impossível.
Pelo menos desta vez.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

URGENTEMENTE

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
Ódio, solidão e crueldade,
Alguns lamentos,
Muitas espadas.
É urgente inventar a alegria,
Multiplicar as searas,
É urgente descobrir rosas e rios
E manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
Impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
Permanecer.

Eugénio de Andrade, Antologia Breve

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

O elefante de circo

Quando eu era muito pequeno, adorava o circo e aquilo de que mais gostava eram os animais. Cativava-me especialmente o elefante que, como vim a saber mais tarde, era também o animal preferido dos outros miúdos. Durante o espectáculo, a enorme criatura dava mostras de ter um peso, tamanho e força descomunais… Mas, depois da sua actuação e pouco depois de voltar para os bastidores, o elefante ficava sempre atado a uma pequena estaca cravada no solo, com uma corrente a agrilhoar-lhe uma das pata.
No entanto, a estaca não passava de um minúsculo pedaço de madeira enterrado uns centímetros no solo. E, embora a corrente fosse grossa e pesada, parecia-me obvio que um animal capaz de arrancar uma árvore pela raiz, com toda a sua força, facilmente se conseguiria libertar da estaca e fugir.
O mistério continua a parecer-me evidente.
O que é que o prende, então?
Porque é que não foge?
Quando eu tinha cinco ou seis anos, ainda acreditava na sabedoria dos mais velhos. Um dia, decidi questionar um professor, um padre e um tio sobre o mistério do elefante.
Um deles explicou-me que o elefante não fugia porque era amestrado.
Fiz então a pergunta óbvia:
- Se é amestrado, porque é que o acorrentam?
Não me lembro de ter recebido uma resposta coerente. Com o passar do tempo, esqueci o mistério do elefante e da estaca e só o recordava quando me cruzava com outras pessoas que também já tinham feito a mesma pergunta.
Há uns anos, descobri que, felizmente para mim, alguém fora tão inteligente e sábio que encontrara a resposta:

O elefante do circo não foge porque esteve atado a uma estaca desde que era muito, muito pequeno.

Fechei os olhos e imaginei o indefeso elefante recém-nascido preso à estaca. Tenho a certeza de que naquela altura o elefantezinho puxou, esperneou e suou para se tentar libertar. E, apesar dos seus esforços, não conseguiu, porque aquela estaca era demasiado forte para ele.
Imaginei-o a adormecer, cansado, e a tentar novamente no dia seguinte, e no outro, e no outro… Até que, um dia, um dia terrível para a sua história, o animal aceitou a sua impotência e resignou-se com o seu destino.
Esse elefante enorme e poderoso, que vemos no circo, não foge porque, coitado, pensa que não é capaz de o fazer.
Tem gravada na memória a impotência que sentiu pouco depois de nascer.
E o pior é que nunca mais tornou a questionar seriamente essa recordação.
Jamais, jamais tentou pôr novamente à prova a sua força…

» A única maneira de saberes se és capaz é tentando novamente, de corpo e alma… e com toda a força do teu coração!«

Jorge Bucay –“ deixa-me que te conte”

Semear Tâmaras

Num oásis escondido numa das mais longínquas paisagens do deserto, encontrava-se o velho Eliahu, de joelhos, ao lado de umas palmeiras de tâmaras.
O seu vizinho Hankim, o endinheirado mercador, deteve-se no oásis para descansar os camelos e viu Eliahu a transpirar, enquanto cavava na areia.
- Então velho? Que a paz esteja contigo.
-E contigo - respondeu Eliahu, sem abandonar a sua tarefa.
- Que fazes aqui, com este calor e com essa pá nas mãos?
- Estou a semear - disse o velho.
- Que semeias aqui, Eliahu?
- Tâmaras – disse Eliahu, apontando para as palmeiras em sua volta.
- Tâmaras! – repetiu o recém chegado. E fechou os olhos como quem escuta a maior estupidez do mundo, com compreensão. – O calor prejudicou-te o cérebro, querido amigo. Vem, deixa essa tarefa e vamos à loja beber um copo de licor.
- Não, quero acabar de semear. Depois se quiseres vamos beber um copo.
- Diz-me, amigo. Quantos anos tens?
- Não sei… Sessenta, setenta, oitenta… Não sei… Esqueci-me. Mas que importância tem isso?
- Olha, amigo. As tamareiras demoram mais de cinquenta anos a crescer e só quando se transformam em palmeiras adultas estão em condições de dar fruto. Não te desejo mal, como sabes. Oxalá vivas até aos cento e um anos, mas tu sabes que dificilmente poderás colher o que sêmeas hoje. Deixa isso e vem comigo.
- Olha, Hakim. Comi as tâmaras que outra pessoa semeou, outra pessoa que também sonhou em comê-las. Eu semeio, hoje, para que os outros possam comer, amanhã, as tâmaras que estou a plantar… E nem que seja em honra desse desconhecido, vale a pena terminar a minha tarefa.
- Deste-me uma grande lição, Eliahu. Deixa-me pagar-te com um saco de moedas esta lição que hoje me deste. – E, dizendo isto, Hakim pôs na mão do velho um saco de couro.
- Agradeço-te as moedas, amigo. Como vês, às vezes acontecem coisas destas: o teu prognóstico é que eu não chegarei a colher o que semeei. Parece verdade e, no entanto, olha, ainda não acabei de semear e já colhi um saco de moedas e gratidão de um amigo.
- A tua sabedoria espanta-me, velho. Esta é a segunda grande lição que hoje me dás e talvez seja mais importante ainda do que a primeira. Deixa-me pagar-te também por essa lição com outro saco de moedas.
- Às vezes acontecem coisas destas – prosseguiu o velho.
E estendeu a mão, olhando para os dois sacos de moedas: - Semeei para não colher e, antes de acabar de semear, colhi não uma, mas duas vezes.
- Chega velho. Não continues a falar. Se continuares a ensinar-me coisas, tenho medo que toda a minha fortuna não seja suficiente para te pagar…

Jorge Bucay - "deixa-me que te conte"

terça-feira, 21 de novembro de 2006

Amor – pois que é palavra essencial

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da prórpia vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Carlos Drummond de Andrade

Soneto da Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento.
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Qual é a resposta correcta...?

Passeio por um caminho solitário.
Desfruto do ar, do sol, dos pássaros
e do prazer de ser levado pelos meus pés
para onde quer que eles me levem.
De um lado do caminho
encontro um escravo a dormir.
Aproximo-me e descubro que está a sonhar.
Pelas suas palavras e expressões adivinho...
Sei o que sonha:
O escravo está a sonhar que é livre.
A expressão do seu rosto reflecte paz e serenidade.
pergunto-me...
Devo acordá-lo e mostrar que é apenas um sonho
para que saiba que continua a ser um escravo?
Ou devo deixá-lo a dormir o tempo todo que puder,
desfrutando, nem que seja apenas em sonhos,
da sua realidade fantasiada?

Jorge Bucay

terça-feira, 14 de novembro de 2006

Having slain anger, one sleeps soundly;

Having slain anger, one does not sorrow;
The killing of anger,
With its poisoned root and honeyed tip:
This is the killing the noble ones praise,
For having slain that, one does not sorrow.

-Buddha, "The Connected Discourses of the Buddha"

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Soneto do Amor Total

Amo-te tanto, meu amor... não cante,
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante,
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade,
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude,
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente,
Hei de morrer de amar mais do que pude.


Vinícius de Moraes

domingo, 12 de novembro de 2006

Madrastas e Padrastos

Como foi o primeiro encontro com a tua madrasta?
Normal. Encontrámo-nos num parque e fomos comer. Ela tem dois filhos e foi muito divertido.
Como soubeste que essa pessoa era a namorada do teu pai?
Ele não me disse, mas eu percebi porque eles davam beijinhos e estavam quase sempre juntos.
O que sentiste?
Senti-me normal. Ela é muito simpática e querida. Quando estou a chorar, ela acompanha-me, dá-me abraços e beijinhos. Gosto muito dela.
Quando vais ter com o teu pai, gostas que ela lá esteja?
Sim, é mais divertido, estou com os filhos dela. Já não a vejo há alguns dias e tenho saudades.
O que é importante para ser uma boa madrasta ou bom padrasto?
Serem simpáticos, carinhosos, darem-nos mimos, compreenderem-nos. Gostarem de nós como somos. Isto é importante em qualquer amizade.
Há alguma coisa que não te agrade?
Tenho medo que os meus pais (mais a minha mãe) me dêem menos atenção por estarem com outras pessoas. Mas isso não acontece. Eu é que sou muito ciumenta.
E que coisas achas positivas...
Se acontecer alguma coisa com a nossa mãe, isso é muito mau. Mas é bom podermos ter logo esta pessoa que nos ajuda a continuar a crescer.

Teresa, 9 anos - Revista "Visão Júnior", nº 30, Novembro/ 2006

sábado, 11 de novembro de 2006

Reflexo Infinito

Hoje, quando via os "Power Rangers" ouvi dizer de um dos "Super Maus":

-"Tem o poder do reflexo infinito, e isso prende-os lá dentro".

Como é perigoso o "reflexo infinito".

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

"Esperar não basta...

Quando o tempo mostra a sua fugacidade...já não basta demorar-se na sensação de ter a alma embalada…

Correr na esperança é um pouco como sentir-se atraído por alguém e empreender uma aproximação em função das expectativas que se pressupõe existirem no outro... o que geralmente apenas conduz a um impasse.
De nada serve perder-se na tentativa de compreender o que o outro sente, ou prever as suas reacções, apenas se esquece o mais importante: a personalidade e a espontaneidade.
Na sedução, assim como na vida, deve-se ter a audácia de simplesmente ser genuíno e mostrar o que se sente...
O nós somente existe na união dos dois "eus". E se assim não for, a relação irá deteriorar-se a cada vislumbre do verdadeiro outro, acabando apenas por permanecer a esperança...
E essa, toma ao longo da vida diferentes caminhos, como o do optimismo, da fé, por vezes até o da ilusão...
Porque confiar na vida parece dar-lhe sentido, trazendo um sentimento positivo e de força.
Mas a esperança acaba indubitavelmente por fazer-nos crer no destino, transformando-se num empecilho, reforçando e justificando a nossa impotência em detrimento da determinação, sugerindo que eventualmente tudo se resolve por si, com o tempo... e que nem tudo depende de nós…

E assim se penhora o futuro... investindo na esperança…"


Chantal Féron - Revista Psicologia actual

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

A Cidade dos Poços


Aquela cidade não era habitada por pessoas, como todas as outras cidades do Planeta.
Aquela cidade era habitada por poços. Poços vivos…mas afinal poços.
Os distinguiam-se entre si não somente pelo lugar onde estavam escavados, mas também pelo parapeito (a abertura que os ligava ao exterior).
Havia poços ricos e ostensivos com parapeitos de mármore e metais preciosos; poços humildes de tijolo e madeira e outros mais pobres, simples buracos rasos que se abriam na terra.
A comunicação entre os habitantes da cidade fazia-se de parapeito em parapeito, e as notícias corriam rapidamente de ponta a ponta do povoado.
Um dia, chegou à cidade uma «moda» que certamente tinha nascido nalgum pequeno povoado humano.
A nova ideia assinalava que qualquer ser vivo que se prezasse deveria cuidar muito mais do interior que do exterior. O importante não era o superficial, mas o conteúdo.
Foi assim que os poços começaram a encher-se de coisas.
Alguns enchiam-se de jóias, moedas de ouro e pedras preciosas.
Outros, mais práticos, enchiam-se de electrodomésticos e aparelhos mecânicos. Outros ainda optaram pela arte, e foram-se enchendo de pinturas, pianos de cauda e sofisticadas esculturas pós-modernas.
Finalmente, os intelectuais encheram-se de livros, de manifestos ideológicos e de revistas especializadas.
O tempo passou.
A maioria dos poços encheu-se a tal ponto que já não podia conter mais nada.
Os poços não eram todos iguais, por isso, embora alguns se tenham conformado, outros pensaram no que teriam de fazer para continuar a meter coisas no seu interior…
Um deles foi o primeiro. Em vez de apertar o conteúdo, lembrou-se de aumentar a sua capacidade alargando-se.
Não passou muito tempo até que a ideia começasse a ser imitada.
Todos os poços utilizavam grande parte das suas energias a alargar-se para criarem mais espaço no seu interior. Um poço, pequeno e afastado do centro da cidade, começou a ver os seus colegas que se alargavam desmedidamente. Ele pensou que se continuassem a alargar-se daquela maneira, dentro em pouco confundir-se-iam os parapeitos dos vários poços e cada um perderia a sua identidade.

Talvez a parti dessa ideia, ocorreu-lhe que outra maneira de aumentar a sua capacidade seria crescer, mas não em largura, antes em profundidade. Fazer-se mais fundo em vez de mais largo. Depressa se deu conta de que tudo que tinha dentro dele lhe impedia a tarefa de se aprofundar. Se quisesse ser mais profundo, seria necessário esvaziar-se de todo o conteúdo…
Ao princípio teve medo do vazio. Mas, quando viu que não havia outra possibilidade, depressa se meteu a fazê-lo.
Vazio de posses, o poço começou a tornar-se profundo, enquanto os outros se apoderavam das coisas das quais ele se tinha despojado…
Um dia algo surpreendeu o poço que crescia para dentro. Dentro, muito no interior e muito fundo… encontrou água.
Nunca antes nenhum poço tinha encontrado água.
O poço venceu a sua surpresa e começou a brincar com a aguado fundo, humedecendo as paredes, salpicando o seu parapeito e, por último atirando água para fora.
A cidade nunca tinha sido regada a não ser pela chuva, que na verdade era bastante escassa. Por isso, a terra que estava à volta do poço, revitalizada pela água, começou a despertar.
As sementes das suas entranhas brotaram em forma de erva, de trevos, de flores e de hastezinhas delicadas que depois se transformaram em árvores…
A vida explodiu em cores à volta do poço ao qual começaram a chamar «o Vergel».
Todos lhe perguntavam como tinha conseguido aquele milagre.
- Não é nenhum milagre - respondeu Vergel . - Deve aprofundar-se no interior até ao fundo.
Muitos quiseram seguir o exemplo de Vergel, mas aborreceram-se da ideia quando se deram conta de que para serem mais profundos se tinham de esvaziar. Continuaram-se a encher mais de coisas…
No outro extremo da cidade, outro poço decidiu correr também o risco de se esvaziar…
E também começou a escavar…
E também chegou à água…
E também salpicou até ao exterior criando um segundo oásis verde no povoado…
- Que vais fazer quando a água acabar? – perguntavam-lhe.
- Não sei o que se passará – respondia ele – Mas, por agora, quanto mais água tiro, mais água há.
Passaram-se uns meses antes da grande descoberta.
Um dia, quase por acaso, os dois poços deram-se conta de que a água que tinham encontrado no fundo de si próprios era a mesma…
Que o mesmo rio subterrâneo que passava por um inundava a profundidade do outro.
Deram-se conta de que se abria para eles uma vida nova.
Não somente podiam comunicar um com o outro de parapeito em parapeito, superficialmente, como todos os outros, mas a busca também os tinha feito descobrir um novo e secreto ponto de contacto.

Tinham descoberto a comunicação profunda que somente conseguem aqueles que têm coragem de se esvaziar de conteúdos e procurar no fundo do seu ser o que têm para dar…

Jorge Bucay – a cidade dos poços