sábado, 25 de novembro de 2006

Os carros velhos que deixamos

A São tinha voltado, sem ninguém saber, tinha-se instalado na cidade de onde tinha saído há muito.
Estava parecida com o que era, mas sempre fora igual a tanta gente que, dificilmente alguém se lembrava mesmo dela.
De cada vez que se olhava para ela, fazia lembrar alguém, sempre outra pessoa e isso era a São.
A cidade era antiga, do tempo dos cruzados. As muralhas de pedra arredondadas pelo vento mostravam o peso que a São não tinha na sua face.
Encontrei-a um dia e como só podia, foi a São que se lembrou de mim.
Como me recordei logo de tudo o que se tinha passado entre nós.
Como era forte o tempo que nós tínhamos em comum.
Cativante e inebriante, de face ingénua, de criança, e assexuada expressão.
Ali estava tudo, a memória do que podia ter sido se.
A conversa foi logo de intimidade e ondas de energia a percorrer todo o corpo.
A cumplicidade e a vergonha do afastamento invadiu-nos.
Sabíamos que algo não estava certo. Mas o quê?
Ela era o que sempre fora, só queria que gostassem dela.
Porque é que acontece isso às pessoas que ao ficarem perto de algumas outras, ficam como se não se conhecessem a si mesmas?
Nós éramos assim, ou melhor ela era assim perto de mim.
Desconfiava no entanto que tinha saído da cidade por minha causa. Não aguentava a nossa proximidade que mexia com ela, aumentando-lhe a agitação sem me fazer parecer agitado
Podia tudo menos isso.
O outro tinha de ficar mais agitado do que ela para ela poder confiar.
Voltou na esperança de ficar, e isso era algo que fazia a diferença no seu comportamento.
Agora não só fazia lembrar os outros na cara como na atitude, até ver.
Aquele encontro não podia ter acontecido, tudo se transformou.
A memória do que aquela cidade é ao pé de mim, voltou a faze-la diferente aos olhos dos outros e isso era insuportável.
Teve de fazer alguma coisa, mas o quê.
Talvez criar um medo, pânico nos outros.
À noite quando estava sentado á janela alguém arremessou um pau, que para alem de partir o vidro fez um grande estrondo com a sua entrada.
Sabia que era ela.
Eu não devia ter parecido calmo quando a encontrei, isso era para ela o pior. Não sabia interpretar os seus sentimentos sem convulsão, a raiva e sem o confronto do outro.
Eu tinha de decidir o que fazer a seguir.
A São tinha mudado de emprego, agora trabalhava no campo, era um trabalho que a fazia relacionar com pessoas que vinham e iam em pouco tempo e raramente voltavam, era mesmo bom para ela.
Assim, podia ser todas as personagens que conseguia, sem problemas de a confrontarem com a estranheza de estar sempre a mudar.
Mas, lá estava eu para tornar tudo difícil, impossível vim eu a perceber.
Aproximei-me calmamente e falei.
Era impossível falar, isso trazia tudo a lume e o medo de não saber o que era a sua natureza era o pior do mundo, pelo menos era o que ela parecia sentir.
Não aguentou, e como o que sabia fazer era fugir, desapareceu deixando o carro que a acompanhava desde o tempo em que nos conhecemos pela primeira vez.
Um carro que tinha sido caro e luxuoso quando novo, mas agora já sem trabalhar e com ferrugem e mossas era um peso a menos que transportava para onde quer que fosse.
O seu antigo amor tinha-a vindo buscar e era uma saída de cena pelo menos familiar já que o desejo de mudar para o que queria, no fundo, era impossível.
Pelo menos desta vez.

Sem comentários: