sexta-feira, 3 de novembro de 2006

A Cidade dos Poços


Aquela cidade não era habitada por pessoas, como todas as outras cidades do Planeta.
Aquela cidade era habitada por poços. Poços vivos…mas afinal poços.
Os distinguiam-se entre si não somente pelo lugar onde estavam escavados, mas também pelo parapeito (a abertura que os ligava ao exterior).
Havia poços ricos e ostensivos com parapeitos de mármore e metais preciosos; poços humildes de tijolo e madeira e outros mais pobres, simples buracos rasos que se abriam na terra.
A comunicação entre os habitantes da cidade fazia-se de parapeito em parapeito, e as notícias corriam rapidamente de ponta a ponta do povoado.
Um dia, chegou à cidade uma «moda» que certamente tinha nascido nalgum pequeno povoado humano.
A nova ideia assinalava que qualquer ser vivo que se prezasse deveria cuidar muito mais do interior que do exterior. O importante não era o superficial, mas o conteúdo.
Foi assim que os poços começaram a encher-se de coisas.
Alguns enchiam-se de jóias, moedas de ouro e pedras preciosas.
Outros, mais práticos, enchiam-se de electrodomésticos e aparelhos mecânicos. Outros ainda optaram pela arte, e foram-se enchendo de pinturas, pianos de cauda e sofisticadas esculturas pós-modernas.
Finalmente, os intelectuais encheram-se de livros, de manifestos ideológicos e de revistas especializadas.
O tempo passou.
A maioria dos poços encheu-se a tal ponto que já não podia conter mais nada.
Os poços não eram todos iguais, por isso, embora alguns se tenham conformado, outros pensaram no que teriam de fazer para continuar a meter coisas no seu interior…
Um deles foi o primeiro. Em vez de apertar o conteúdo, lembrou-se de aumentar a sua capacidade alargando-se.
Não passou muito tempo até que a ideia começasse a ser imitada.
Todos os poços utilizavam grande parte das suas energias a alargar-se para criarem mais espaço no seu interior. Um poço, pequeno e afastado do centro da cidade, começou a ver os seus colegas que se alargavam desmedidamente. Ele pensou que se continuassem a alargar-se daquela maneira, dentro em pouco confundir-se-iam os parapeitos dos vários poços e cada um perderia a sua identidade.

Talvez a parti dessa ideia, ocorreu-lhe que outra maneira de aumentar a sua capacidade seria crescer, mas não em largura, antes em profundidade. Fazer-se mais fundo em vez de mais largo. Depressa se deu conta de que tudo que tinha dentro dele lhe impedia a tarefa de se aprofundar. Se quisesse ser mais profundo, seria necessário esvaziar-se de todo o conteúdo…
Ao princípio teve medo do vazio. Mas, quando viu que não havia outra possibilidade, depressa se meteu a fazê-lo.
Vazio de posses, o poço começou a tornar-se profundo, enquanto os outros se apoderavam das coisas das quais ele se tinha despojado…
Um dia algo surpreendeu o poço que crescia para dentro. Dentro, muito no interior e muito fundo… encontrou água.
Nunca antes nenhum poço tinha encontrado água.
O poço venceu a sua surpresa e começou a brincar com a aguado fundo, humedecendo as paredes, salpicando o seu parapeito e, por último atirando água para fora.
A cidade nunca tinha sido regada a não ser pela chuva, que na verdade era bastante escassa. Por isso, a terra que estava à volta do poço, revitalizada pela água, começou a despertar.
As sementes das suas entranhas brotaram em forma de erva, de trevos, de flores e de hastezinhas delicadas que depois se transformaram em árvores…
A vida explodiu em cores à volta do poço ao qual começaram a chamar «o Vergel».
Todos lhe perguntavam como tinha conseguido aquele milagre.
- Não é nenhum milagre - respondeu Vergel . - Deve aprofundar-se no interior até ao fundo.
Muitos quiseram seguir o exemplo de Vergel, mas aborreceram-se da ideia quando se deram conta de que para serem mais profundos se tinham de esvaziar. Continuaram-se a encher mais de coisas…
No outro extremo da cidade, outro poço decidiu correr também o risco de se esvaziar…
E também começou a escavar…
E também chegou à água…
E também salpicou até ao exterior criando um segundo oásis verde no povoado…
- Que vais fazer quando a água acabar? – perguntavam-lhe.
- Não sei o que se passará – respondia ele – Mas, por agora, quanto mais água tiro, mais água há.
Passaram-se uns meses antes da grande descoberta.
Um dia, quase por acaso, os dois poços deram-se conta de que a água que tinham encontrado no fundo de si próprios era a mesma…
Que o mesmo rio subterrâneo que passava por um inundava a profundidade do outro.
Deram-se conta de que se abria para eles uma vida nova.
Não somente podiam comunicar um com o outro de parapeito em parapeito, superficialmente, como todos os outros, mas a busca também os tinha feito descobrir um novo e secreto ponto de contacto.

Tinham descoberto a comunicação profunda que somente conseguem aqueles que têm coragem de se esvaziar de conteúdos e procurar no fundo do seu ser o que têm para dar…

Jorge Bucay – a cidade dos poços

1 comentário:

Anónimo disse...

A felicidade é uma prerrogativa do homem.Ele a busca e todos têm o mesmo direito de querer conquistá-la.Ninguém procura a infelicidade.A justiça e a igualdade são também direitos do homem.A prática desses princípios deve decorrer do altruísmo,sem qualquer influência nociva dos meandros do poder e da riqueza.Para desenvolver este principio altruísta,de forma a permitir que justiça e paz coexistam,é preciso antes de tudo criar para a sociedade um sustentáculo moral inabalável.
Dalai-Lama